Notícias CEAPE

Por que e como Trump entrou em guerra para financiar a dívida pública e salvar o dólar?

Escrito por Rabah Benakouche* para o site Boitempo14 de Mai de 2025 às 10:39
Notícias CEAPE
Como diria John Connally, Secretário do Tesouro dos EUA em 1971, “o dólar é nossa moeda e o problema é de vocês”.
 
 

A questão posta pelo título implica em dizer que a guerra comercial é uma estratégia de fachada pública e publicada, pois o “núcleo duro” da guerra “real” é a financeiração (à força) da dívida pública e, portanto, a batalha por salvar o estatuto hegemônico do dólar.1

Para cernir a dimensão dos problemas em questão, parte-se de alguns dados básicos da economia norte-americana: em 2024, o PIB dos EUA foi de US$ 29.000 bilhões, equivalente a 27% do PIB mundial (US$ 109.000 bilhões). Têm-se déficits gêmeos — o déficit comercial e o déficit do governo federal — que implicam numa necessidade de financiamento de quase US$ 2.000 bilhões (o equivalente ao PIB da Itália). Fora disso, as receitas do governo federal são inferiores às despesas; os Estados Unidos enfrentam um déficit orçamentário de 6,3% do PIB para uma dívida pública total (dívida federal e a intragovernamental) de US$ 40.000 bilhões (ou seja: 120,3% do PIB).2 Enfim, registra-se uma entrada de capitais inferior à saída, as contas correntes registram déficit. Isso significa que os EUA dependem cada vez mais de compradores (públicos e privados, nativos e estrangeiros) de títulos do Tesouro, compras essas que ajudam a salvar o estatuto do dólar de seus contestadores.

Diante dessa situação, elabora-se uma narrativa oficial3, segundo a qual os EUA vivem uma situação de “saqueamento”. Este último refere-se, notadamente, à deslocalização de indústrias para países como México, Bangladesh, China e outros, onde os trabalhadores recebem baixíssimos salários. Esse processo implicou no fechamento de centenas de fábricas, provocando o declínio da mão de obra industrial, que na última década passou de 30% da população economicamente ativa para 8%. O “saqueamento” é visto assim como fator da desindustrialização, a qual teria provocado déficits colossais — o déficit orçamentário federal atingiu US$ 1.800 bilhões em 2024, com a dívida pública total (i.e. dívida federal e intragovernamental) chegando a US$ 40.000 bilhões (quase a metade do PIB mundial). O serviço da dívida eleva-se em US$ 1.241 bilhões; e as despesas militares chegaram a US$ 659 bilhões.

Frente a tal situação, o presidente Donald Trump prometeu trazer os empregos na área de manufatura de volta aos EUA, fazendo com que o país volte a ser “a superpotência manufatureira do mundo que já foi” um dia. Esse é um dos principais objetivos de sua política do “tarifaço”; política que vem acompanhada de pressão por concessões sobre os parceiros comerciais, quer seja para que comprem títulos do Tesouro, quer seja para valorizar suas moedas. Dentro dessa perspectiva, o persistente déficit comercial dos EUA seria uma evidência de que o resto do mundo está “saqueando” os EUA, por meio de barreiras comerciais injustas e taxas de câmbio excessivamente baixas. Como resultado, a base industrial dos EUA estaria desmoronando, prejudicando o padrão de vida dos norte-americanos.

Para deter esse processo que aponta o declínio do Império, recorre-se às tarifas sobre importações, com o intuito de forçar os parceiros comerciais a comprarem os títulos da dívida americana e valorizarem sua própria moeda. Isso provocaria uma desvalorização do dólar e tornaria os produtos norte-americanos mais competitivos, resultando, finalmente, no aumento das exportações. Isso, por sua vez, geraria reindustrialização e, no final do processo, o equilíbrio financeiro e comercial seria restaurado e o dólar salvo de suas contestações.

Nesse processo de luta contra os desequilíbrios, o dólar tem um papel decisivo. A função do dólar é vista aqui apenas a partir de uma das suas múltiplas funções, a saber: a da criação monetária ex nihilo. Para explicitar a fundamentação sustentada, a análise se fará em dois tempos: após esclarecer o propósito da transferência dos custos dos problemas dos EUA para o resto do mundo, passar-se-á a considerar o “poder exorbitante” do dólar.

Problemas dos EUA custeados pelo “resto do mundo” via dólar

A venda dos títulos do tesouro tem ajudado e ainda ajuda a financiar a dívida pública e, portanto, a manter a confiança no dólar com seu status hegemônico. Tal processo de salvação, por sua vez, baseia-se em mecanismos econômicos de transferência de custos dos ditos problemas dos EUA para o resto mundo, transferência que ajuda a sustentar, em última análise, o padrão de vida americano.

Esse modo de encarar o problema levanta a seguinte questão: o dólar como moeda internacional é um problema americano ou mundial? Recorde-se que o dólar não era, contudo, um problema americano nem mundial quando era lastreado em ouro. No entanto, no dia 15 de agosto de 1971, o governo americano, na voz do seu presidente Richard Nixon, decidiu, unilateralmente, desatrelar o dólar do ouro, renegando sua relação contratual estabelecida em Bretton Woods, em 1944, com “o resto do mundo”. Desde então, a relação dos EUA com o resto do mundo mudou radicalmente: como diria John Connally, Secretário do Tesouro na ocasião, “o dólar é nossa moeda e o problema é de vocês”. Por isso, desde 1971, os dólares não param de jorrar da torneira do Federal Reserve (FED) via criação monetária ex nihilo; e jorram mais ainda dólares para o exterior a partir dos investimentos de multinacionais, de fundos especulativos e de déficits do Tesouro. Resultado: os EUA exportam sua inflação; desequilibram países endividados e desestabilizam Europa, China, Índia, Brasil etc. Paralelamente a isso, os EUA recebem cerca de 60% da poupança mundial, e isso apesar da rentabilidade irrisória dos seus títulos públicos. Tem-se aí um paradoxo econômico; no entanto, esse fenômeno é político e perfeitamente compreensível. Traduzindo: quanto mais aumenta o endividamento, menores são as taxas de juros pagas para os títulos públicos. Paga-se anualmente taxas nominais médias de 2,5% a 3,9% para títulos de 10 anos. Taxas essas que não geram rendimentos significativos quando é descontada a inflação. No final, tem-se não um rendimento sem risco, mas um risco sem rendimento.

Para explicar essa situação absurda, há autores que sustentam que os compradores de títulos públicos americanos não têm autonomia plena na sua tomada de decisão de investimento, ou seja, esses investidores, notadamente os dos Estados do Golfo Pérsico (produtores de petróleo) e do Japão, entre outros, não conseguem investir seus recursos em lugares onde as taxas de juro sejam mais elevadas. Já em 2011, Myret Zaki afirmava que havia então “uma perda de confiança” e uma degringolada da moeda (dólar). Os Estados Unidos utilizavam sua força militar para empurrar [“indiretamente”] os países a aceitarem sua moeda, o dólar”4.

Fato é que os atuais fundamentos da economia americana estão próximos daqueles da Grécia na crise de 2012. Mas nem por isso há problemas no país; ao contrário, os seus problemas são suportados pelo resto do mundo “et pour cause!”: os EUA são a única superpotência mundial. Única e singular “fabricante” da moeda universal.

Esmiuçando a análise, nota-se que os EUA adotam uma “política de endividamento”. Isso vem ocorrendo há quase 40 anos, com aumentos exponenciais a cada ano. Como resultado, a dívida pública total e o custo dos seus interesses atingiram seus picos (referidos acima). Outro fator agravante é o aumento dos gastos com defesa (valores também já referidos acima). Há, no caso, um déficit do Tesouro de quase US$ 2.000 bilhões. O FED concede, desde 2008, bilhões de dólares em empréstimos com taxas de juros irrisórias, que se situam entre 0% e 0,25%; quer dizer, tem-se juros reais negativos. Concretamente, o pensamento da FED pode ser formulado assim: “Bancos, se vocês tomarem empréstimos de US$ 1,0 trilhão de mim, garanto para vocês um lucro anual de US$ 10 bilhões”. Aí, há de se convir que o mundo do FED é avesso aos princípios e regras de eficiência do mundo das finanças. Empréstimos do FED são, em última análise, benesses, para não dizer doações puras e simples. Como se isso não bastasse como doações, o FED resolveu elevar o montante da sua bonificação para bancos de Wall Street através da sua política monetária de Quantitative Easy (EQ), iniciada em agosto de 2010. Disponibilizou naquele ano, através desse programa, US$ 1,7 trilhão para compra de ativos tóxicos dos bancos, ou seja, limpar seus balanços, deixando-os enxutos e transferindo os custos para a população americana e para o resto do mundo.

Traduzindo: o FED “fabricou” dinheiro a partir de nada e o resto do mundo recebeu montanhas desses dólares que não têm contrapartida econômica real. Melhor dito: os bilhões de dólares produzidos do nada e as quantidades fenomenais de dólares que saíam das torneiras do Tesouro (déficits) e do FED (criação monetária do nada) caíram nas costas do “resto do mundo”. Com efeito, sabe-se que no mundo real, quando há excesso de dinheiro em relação aos ativos econômicos, gera-se inflação. Só que nos EUA a inflação é baixa, mas é alta no resto do mundo. Ela era, em março de 2025, de 2,4% nos EUA, contra 5,06% no Brasil, 10,1% na Rússia, 55,5% na Argentina, 2,6% no Reino Unido e 32% na África do Sul. A guerra do presidente Donald Trump já produziu seus efeitos cambiais esperados: em apenas 15 dias, houve desvalorização do Euro de 5%. Isso significa que produtos europeus que entram nos EUA estão 15% mais caros; e os produtos americanos que ingressam na Europa, 5% mais baratos. Ademais, a parte dos EUA nas reservas mundiais é (“et pour cause!”) irrisória: 2%, contra 30% da China; Europa, 11%; Rússia, 4% etc.

Desse modo, consegue-se a façanha de fazer descolar a economia americana dos seus problemas, sem pagar nenhum preço: nem adotar uma política de austeridade, nem praticar uma restrição orçamentária, nem serem controlados pelos “xerifes” do FMI. Tem-se aí um verdadeiro almoço grátis, como diria Milton Friedman. Só que é grátis para os EUA, mas seu custo é pago pelo “resto do mundo”! Tudo isso se insere e se explica pelo “poder exorbitante” do dólar.

O “poder exorbitante” do dólar

Esse tipo de poder tem consequências econômicas (vide a exportação da inflação pelos EUA, acima referida); financeiras (via intervenções — mais impostas do que solicitadas — do FED e do Tesouro em firmas e países estrangeiros) e geopolíticas (sanções econômicas impostas a países5 e influência sobre a formação do preço de petróleo).

Dentro dessa perspectiva, e referindo-se à questão geopolítica, Edouard Terreau (um banqueiro internacional, e não o militante político de uma ONG) chama a atenção para o fato de que esse “poder exorbitante do dólar” está também provocando desordens políticas e geopolíticas. E ele se refere especificamente à fuga dos investidores do dólar, quando escreve: “[…] os grandes detentores de dólares, por parte de empresas, de fundos de investimentos ou de fundos soberanos, não são completamente estúpidos. Sabem que os Estados Unidos estão deixando degringolar sua moeda, o que implica em depreciação dos seus haveres. Eles vêem que as taxas de juros são quase nulas e a rentabilidade é irrisória. Aí, começaram a procurar outros investimentos que não sejam em dólares”6.

Vale notar que a China acumula anualmente cerca de US$ 800 bilhões em divisas. Cada dia que passa ela se dá conta de que a montanha de dinheiro acumulado se torna desnecessária ou até prejudicial (devido às taxas de juros negativas aventadas acima). 

O que a China poderia ter feito com essa montanha de dólares? Se tivesse convertido seu estoque de bilhões de dólares em ouro, ela teria esvaziado os cofres do FED. Isso não aconteceu, nem poderia acontecer, pois os EUA não iam deixar que acontecesse, por razões geopolíticas óbvias! Daí, para saldar suas dívidas antigas, os EUA emitem novas dívidas. Resultado: o carrossel gira e não pode parar! E se parar o sistema entra em colapso!

O sistema sustenta-se no aumento ad eternum do crédito e, portanto, da dívida pública dos EUA. É na pirâmide de créditos que reside, precisamente, o problema, como explica Maurice Allais: “[…] No centro de todas as dificuldades encontradas, localiza-se, sob uma forma ou outra, o papel nefasto atual do crédito e da especulação maciça que ele permite. Enquanto não for reformado o quadro institucional no qual ele tem um papel, encontraremos sempre, com modalidades diferentes e segundo as circunstâncias, as mesmas dificuldades maiores. Todas as grandes crises dos séculos XIX e XX resultaram do desenvolvimento excessivo de promessas de pagamento e de sua monetização”.7

O autor destaca a criação monetária ex nihilo como o principal aspecto desequilibrador do atual sistema monetário internacional. Ponto sobre o qual já insistia também Jacques Rueff, quando escreveu: “atualmente, não há tarefa mais urgente para o Ocidente do que reconhecer o perigo que o ameaça”, a saber, o crédito; “e deve, logo, restabelecer no mundo livre um sistema monetário de equilíbrio duradouro”8. 

Em suma, vale notar que o dólar representa as “duas faces de Janus” no “soft power monetário”: o “soft-dollar” e o “hard-dollar”. Sua primeira característica revela que ele é mais do que uma moeda, um simples fenômeno econômico: é um “fato social total”. Um símbolo da potência americana. Um modo de vida. Uma ideia de cosmovisão. Verifica-se, de outro lado, que felizes são os EUA que têm também o “hard-dollar”, que lhes permite gastar sem contar nem pagar verdadeiramente suas contas, porque são eles mesmos que fabricam os dólares que remetem aos seus credores internacionais. Por isso e por tantas outras “cositas”, pode-se dizer que o atual (não) sistema monetário internacional se encontra a mil léguas do que se chama “justiça”, bem como do simples sistema comercial do tipo “ganha-ganha”. Ao contrário disso, vive-se num sistema onde o elemento hegemônico (os EUA com seu dólar) sai ganhando e aos demais países pede-se paciência! 

Notas:

1.Nessa perspectiva, ver: Rabah Benakouche. Moeda é política. Por que constitui uma questão do Estado?  Appris Editora,2013; e A dívida dos países ricos. Xamã Editora, 2012. 
2.Confira dados detalhados aqui. 
3.Miran, Stephen. A User´s Guide to Restructuring the Global Trading System. Hudson Bay Capital, Nov. 2024. 
4.Zaki, Myret. La fin du dollar. Paris: Favre, 2011, p.97 . 
5.Zarate, Juan C. Treasury´s war: The Unleashing of new era of final warfare. NY: Perseus Books, 2013 
6.Terreau, Edouard. Quand le dollar nous tue. Paris: Grasset, 2011, p. 99.

7.Allais, Maurice. La crise monétaire aujourd´hui : pour une profonde réforme des institutions financières et monétaires. Clément Juglar, 1999, p. 66. 

8.Rueff, Jacques. Le péché monétaire de l’occident. Paris: Plon, 1961, p. 17. 
***
Rabah Benakouche* é Docteur d’état em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris e doutor em Engenharia Industrial pela École Centrale de Paris, professor titular (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina e autor do livro Bazar da dívida externa brasileira (Boitempo, 2013).

No Brasil, a dívida externa fez parte constitutiva da história do país; estendeu-se por um longo período de quase dois séculos. Atormentou suas relações externas e foi uma das principais fontes internas de instabilidade política. Seu fim, em fevereiro de 2008, foi um fato histórico inédito e, enquanto tal, merecedor de análises detalhadas, como a contemplada nesta obra. Benakouche entende que, por ser essa dívida um grande negócio, a variável econômico-mercantil é apenas uma das suas dimensões.

Enquanto os estudos nessa área costumavam focar, exclusivamente, a questão do equilíbrio do balanço de pagamentos e ignoravam todas as demais dimensões do endividamento, Bazar da dívida externa analisa as outras inúmeras dimensões, visíveis e invisíveis, ditas e não ditas, pessoais ou organizacionais, que entram no jogo, quer seja sob a forma de técnicas financeiras e jurídicas quer seja na divisão ou proteção de mercado, ou ainda na esfera de influência geoestratégica ou política. O livro tenta desvendar os sentidos e os significados das redes de conexão entre juros, spread, prazos, interesses, estratégias, decisões… e decisores.

   

 

Mais Noticias

Utilizamos cookies para oferecer melhor experiência, melhorar o desempenho, analisar como você interage em nosso site e personalizar conteúdo.

Política de Privacidade