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O liberal-autoritarismo

Luiz Gonzaga Belluzzo diz que o neoliberalismo à brasileira dos anos 1990 destruiu a sinergia entre investimento público e privado dos anos de crescimento acelerado

Escrito por Luiz Gonzaga Belluzzo03 de Mar de 2015 às 13:01
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Belluzzo fala sobre o neoliberalismo dos anos 90 e processo de desindrustrialização brasileiro.
 
 

Ainda me lembro de um seriado da Rede Globo sobre Juscelino Kubitschek. Exibido em março de 2006, os episódios atiçaram nas novas gerações a nostalgia do Brasil que não viveram. A despeito dos estragos das novas tecnologias, alguns jovens conseguem escapar dos devaneios da telinha e se dão ao trabalho de escavar a história. Meus filhos e seus amigos me interpelavam, com suas angústias e esperanças, sobre o desenvolvimentismo. Perguntavam se "Juscelino foi "tudo aquilo"".

Respondi que no período dito "desenvolvimentista" foram travadas batalhas decisivas e sangrentas pela consolidação do processo de industrialização. As lutas de Getúlio Vargas fizeram a economia brasileira evoluir entre 1930 e 1945. O fazendão atrasado e melancólico do Jeca Tatu cedia espaço a uma economia urbano-industrial incipiente. Deposto em 1945, Vargas foi eleito em 1950. Retomou o projeto desenvolvimentista. A economia primário-exportadora havia legado deficiências na infraestrutura (energia elétrica, petróleo, transportes, comunicações) e o presidente lançou em 1951 o Plano de Eletrificação, criou o BNDE em 1952 e a Petrobras em 1953.

Seu suicídio em 24 de agosto de 1954 não conseguiu barrar a marcha da industrialização brasileira. JK ganhou os combates que Vargas concebeu. O Plano de Metas promoveu a modernização dos setores existentes e incentivou a constituição dos departamentos industriais que produzem equipamentos, componentes, insumos pesados e bens duráveis.

Ao contrário do que pregam os caipiras-cosmopolitas, aquela malta que circula pelo mundo, sem entender nada do que acontece, o projeto juscelinista integrou a economia brasileira ao vigoroso movimento de internacionalização do capitalismo do pós-Guerra. Por isso, os ultranacionalistas achavam que JK perdeu as batalhas que Vargas teria imaginado ganhar.

Nos 50 anos terminados no início da década dos 80, a economia brasileira cresceu de forma acelerada e viveu notáveis transformações, transitando do modelo primário exportador para a etapa industrial. O ethos do desenvolvimento nasceu da percepção das camadas empresariais nascentes, do estamento burocrático-militar, de algumas lideranças intelectuais e do proletariado em formação de que o objetivo de aproximar o País das formas de produção e de convivência não poderia ser alcançado por meio da simples operação das forças naturais do mercado.

O projeto de industrialização foi construído por meio de alianças políticas, regionais e de classe que não só atraíram os interesses mais retrógrados e reacionários para o bloco desenvolvimentista como selaram compromissos com as forças do internacionalismo capitalista. Algumas características mais marcantes do desenvolvimento brasileiro decorreram da repactuação continuada deste compromisso: a espantosa persistência da estrutura agrária, a reprodução e ampliação das desigualdades sociais, transportadas do campo para a cidade, o patrimonialismo e o rentismo do sistema bancário, a eterna revolta contra o pagamento de impostos por parte dos endinheirados.

A desorganização dos anos 80, a década perdida, revigorou o cosmopolitismo das camadas dominantes e fez caducar os compromissos firmados em torno do objetivo comum do desenvolvimento. De outro lado, aumentaram as pressões das classes subalternas pelo reconhecimento integral de seus direitos políticos, sociais e econômicos.

Não é por outra razão que o liberalismo transformou-se, outra vez, na força ideológica dominante na economia, enquanto os rancores autoritários se insinuam no debate político. Diante da dificuldade de se reconstituir em novas bases um objetivo compartilhado, do visível enfraquecimento financeiro e da submissão crescente do Estado ao poder da nova finança, o liberalismo autoritário aparece como a expressão mágica da possibilidade de resolver os conflitos de interesses no interior das camadas dominantes e, ao mesmo tempo, apresenta-se como um conjunto de propostas reformistas, capaz de bloquear o avanço das classes subalternas na luta pela ampliação de seus direitos.

Nos anos 1990, os "renovados" da periferia sucumbiram às forças da globalização e da integração dos mercados, sobretudo os financeiros. A estratégia de "desenvolvimento" apoiava-se na abertura comercial (e na valorização cambial) para impor disciplina competitiva aos produtores domésticos, forçando-os a realizar ganhos substanciais de produtividade. As privatizações e o investimento estrangeiro removeriam gargalos de oferta na infraestrutura, reduzindo custos e melhorando a eficiência.

O neoliberalismo à brasileira dos anos 1990 destruiu a sinergia entre investimento público e privado dos anos de crescimento acelerado. A privatização das empresas públicas removeu um arranjo institucional que garantiu o desenvolvimento da indústria de bens de capital. Isso foi decisivo para impulsionar o processo de desindustrialização. Evaporou-se a sinergia virtuosa entre o gasto público e o investimento privado.

   

 

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