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Cultura do segredo é entrave à transparência, diz Valente

Escrito por Ceape TCE/RS01 de Jul de 2014 às 13:23
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Cultura do segredo é entrave à transparência, diz Valente

 

Leia entrevista publicada no Jornal do Comércio de 30/06/2014

 

Texto: Guilherme Kolling / Foto: Marco Quintana/JC

 

Para escrever Operação Banqueiro, o jornalista Rubens Valente consultou um acervo de 62 mil arquivos virtuais, organizado por ele ao longo de anos em que cobriu grandes investigações da Polícia Federal (PF). O volume de documentos permitiu que seu livro-reportagem, a cada nova informação apresentada, aponte, em uma nota de rodapé, a fonte da afirmação: inquéritos policiais, processos judiciais, entrevistas, relatórios, depoimentos em CPIs...

“Optei por colocar no pé da página porque achei que o assunto é tão polêmico que o leitor tem o direito de saber de onde eu tirei aquilo imediatamente, então, foi uma estratégia também de transparência”, explica Valente.

A narrativa trata da Operação Satiagraha — de 2008, uma das mais famosas e polêmicas da PF, marcada pela prisão do banqueiro Daniel Dantas — e de investigações sobre negócios do grupo Opportunity. Também acompanha a trajetória de protagonistas da Satiagraha, como o delegado Protógenes Queiroz, afastado do caso e hoje deputado federal pelo PCdoB, e o juiz Fausto De Sanctis.

Na introdução do livro, Valente deixa claro as dificuldades de acessar dados de órgãos públicos. “Quase tudo de mais relevante que eu pude verificar nessa massa de documentos é considerado sigiloso. A cultura do segredo invadiu os processos judiciais no Brasil. Casos de alto interesse público, como companhias telefônicas sob concessão pública, são hoje escondidos do contribuinte por um carimbo da burocracia”, anota.

A apuração não fica restrita ao período da Satiagraha, que investigou crimes financeiros. Retrata eventos importantes dos últimos 20 anos, como a formação de consórcios que disputaram as privatizações da telefonia, os casos Kroll (de espionagem em disputas societárias, que atingiram até membros do primeiro escalão do governo federal), Banestado (remessas ilegais de divisas) e mensalão.

O jornalista esteve no Tribunal de Contas, em Porto Alegre, no mês passado, para falar sobre os dois anos da Lei de Acesso à Informação. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Valente avalia a legislação como um avanço para o País e fala sobre entraves para que seja cumprida pelo governo federal.

Jornal do Comércio – A maior parte das informações do livro-reportagem Operação Banqueiro foi apurada antes de a Lei de Acesso à Informação entrar em vigor no País. Teria feito muita diferença se essa legislação já estivesse valendo antes?

Rubens Valente – Não faria muita diferença, porque o grosso das informações do meu livro tem a ver com o sigilo judiciário, e a Lei de Acesso à Informação não abarca esse sigilo. Usei a lei em relação a alguns documentos que eram da época da ditadura militar (1964-1985) e também da secretaria do GSI (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República). Requisitei esses documentos bem na época em que a lei entrou em vigor. Logo depois, tive uma resposta positiva. Mas foram dois ou três documentos.

JC – A lei já está em vigor há dois anos. Quais os entraves para sua aplicação?

Valente – Falando por Brasília, em relação ao governo federal – nos estados, eu não tenho como dar um panorama –, há muitos pedidos (de acesso a informações) que são rejeitados sob alegação de que são genéricos, amplos demais. Mas ao invés de o órgão responder com um mínimo de informação, para, a partir daí, se elaborar um novo pedido, o órgão se recusa, e aí bloqueia. Na verdade, opera contra o espírito da lei, que é o da transparência ativa, dizer o que tem (quais documentos). A Lei de Acesso à Informação é um avanço, mas ainda esbarra nessa cultura do segredo, que contamina muito as instituições, gestores que decidem ou ser rigorosos demais ou simplesmente nem aplicar a lei como ela é prevista.

JC – O que é essa cultura do segredo e por que ela ainda persiste no País dois anos após ter sido criada a Lei de Acesso à Informação?

Valente – O que acontece é que existe uma cultura do segredo, cuja origem pode estar na ditadura militar, e que se espalha por todos os órgãos e contamina especialmente os servidores dos mais altos cargos. É a noção de que a informação pública pertence a grupos de pessoas. Mas pertence, na verdade, ao povo. É como se determinadas informações pudessem ser guardadas e manipuladas por uma casta do funcionalismo. Isso é a cultura do segredo. Tratar a informação pública como algo de domínio privado. E os obstáculos para se ter acesso à informação, muitas vezes, derivam de decisões subjetivas e pessoais. A transparência ativa ainda engatinha no Brasil. Esse quadro é preocupante especialmente em inquéritos policiais e processos judiciais, que a Lei de Acesso à Informação não abarca.

JC – Como mudar esse quadro? Há alguma perspectiva?

Valente – Não há outro caminho a não ser a discussão interna dos Poderes, promovendo a conscientização dos seus servidores. É claro que a pressão pública também deve ocorrer, mas tem um papel limitado. Até porque é impossível cobrar o acesso a documentos que nem sabemos que existem. É uma mudança cultural de dentro para fora, é uma mudança cultural mais do que administrativa. O Estado deve perceber que as informações pertencem não àquele grupo de servidores, mas sim aos cidadãos.

JC – Operação Banqueiro revela documentos da Operação Satiagraha, mas vai além...

Valente – O livro recupera também investigações do passado que tocaram nos negócios do banco (Opportunity), como a CPI dos Correios e o caso Banestado. É uma tentativa de recontar essa história, de reavaliar as provas, e também trazer a público provas que estavam sob sigilo e que eram de interesse público.

JC – A narrativa ainda inclui o confisco da poupança no governo Collor, a formação dos consórcios para as privatizações, descreve os leilões na área de telefonia, disputas societárias, os casos Kroll, Satiagraha, mensalão e faz conexões. Qual a importância dessa contextualização? Por que um período tão abrangente?

Valente – Minha intenção era mostrar que os eventos ocorriam não apenas naquele único período (da Operação Satiagraha, em 2008), mas que têm a ver com o passado. A investigação policial é focada no presente, no crime cometido. Então, saí da investigação e voltei no tempo. Achava isso importante para tornar a leitura racional, para que o leitor não ficasse perdido. A maior dificuldade era introduzir os personagens... Às vezes, o leitor fica perdido, porque não tem o background daqueles personagens. Então, achei importante dar esse passado, para que quando as coisas acontecessem no presente, o leitor fizesse as ligações: temporais, de amizade. Então, é um livro que é um resumo também do que eu vi e vivi em 12 anos (como repórter).

JC – E essa reflexão no livro, de que alguns são “mais iguais do que os outros” perante a Justiça no País?

Valente – O livro procura mostrar que o País ainda não atingiu um nível de equilíbrio no tratamento dos réus. O País ainda está a reboque de um sistema que analisa o réu de acordo com a sua capacidade de defesa, a sua projeção política, o seu status político. Esse caso (Satiagraha) evidencia isso. Essa espécie de blindagem que esses cidadãos ainda conseguem construir hoje no Brasil – por meio de advogados muito bem pagos, de estratégias de mídia, por meio de contatos políticos... E o livro tenta levantar esse debate: que sociedade nós estamos criando assim? Quer dizer, quando falamos sobre a violência crescente, casos de linchamento na rua, não estamos falando de impunidade também?

JC – Como?

Valente – Nos linchamentos, a violência crescente tem a raiz na impunidade. E o País que se projeta para o futuro tem que resolver esse sistema de punição. Tem que ser um sistema rápido, seguro e justo. E os exemplos vêm de cima. O bandido comum lê jornal, vê TV. E pode ser levado a compreender que o crime compensa. Não é uma brincadeira, é o tema mais sério da vida brasileira: como o Judiciário trata quem comete um ilícito. Ninguém sai na rua dizendo: hoje eu vou linchar alguém, hoje eu vou explodir um foguete contra alguém. As pessoas que cometeram esses atos devem ser punidas. Mas, em síntese, não eram bandidos por natureza. Esses linchamentos refletem esse caldo cultural, que representa um sentimento de impunidade. Que as pessoas comuns querem, cada vez mais, anular por meio de atalhos, como o linchamento. É preciso discutir o que os gerou, além de punir. São os momentos mais graves da nossa democracia: o sentimento de impunidade, de que o rico não é preso, de que quem tem dinheiro não vai para a cadeia, de que, lá adiante, conseguimos enrolar o Judiciário.

JC – Chama a atenção, na narrativa, que cada informação nova vem com uma nota de rodapé, apontando o documento no qual aquela afirmação se baseia.

Valente – Tem livro que joga as notas remissivas para o final, que faz a remissão por página, e há livros que fazem por parágrafo. Optei por colocar no pé da página porque achei que o assunto é tão polêmico que o leitor tem o direito de saber de onde eu tirei aquilo imediatamente, então, foi uma estratégia também de transparência. Agora, a nota é curta, não pode truncar a leitura. E o que eu fiz nesse livro não tinha nenhum parâmetro. Peguei todos os documentos e construí uma linha do tempo num arquivo Word, ano a ano. Então, quando encontrava um documento de 2010 que dizia respeito a 2001, colocava aquele documento em 2001, para que houvesse uma lógica. Com exceção dos e-mails, que falam de 2001, e eu trato lá no final do livro.

JC – Por quê?

Valente – Como uma técnica, para dar um clímax na narrativa, e também porque os e-mails foram apreendidos em 2009, 2010, depois que o delegado (Protógenes Queiroz) sai (do caso Satiagraha) e entra o outro delegado. Por isso, optei por deixar ali. O resto fui trazendo para a data correta. Isso demandou muito trabalho.

JC – Quanto tempo levou para escrever o livro?

Valente – Foi escrito de 2010 a 2012. Mas houve complementações de lá para cá, até 2013 fui atualizando. E esse arquivo da cronologia começou a ser montado em 2008, separando e lendo documentos, colocando na data correta. Quando acabei essa linha do tempo, tinha toda a estrutura do livro.

JC – O livro-reportagem é a alternativa para detalhar casos complexos, “com início, meio e fim”, ou seria viável também no jornalismo diário ter essa informação contextualizada num espaço bem menor?

Valente – O livro está se tornando um canal interessante e viável para grandes reportagens. E, pelo tamanho e pela linguagem, continua sendo o único capaz de reproduzir uma história como essa (Satiagraha), e poder dar a dimensão que a história tem. É uma saída que achei, livros. Já estou fazendo outro – novamente obtive documentos e quero torná-los públicos – sobre como o Estado brasileiro tratou o índio durante a ditadura militar.

JC – Operação Banqueiro analisa também as dificuldades da cobertura da imprensa em um caso tão complexo e elogia, por exemplo, a série de reportagens da revista CartaCapital, que cobriu o caso de forma contínua por anos. Essa continuidade seria o caminho para trabalhar temas complexos como esse da Satiagraha?

Valente – É um caminho, porque o conhecimento é um acúmulo. Então, se o repórter consegue tornar esse conhecimento acessível, lá adiante, ele pode produzir uma narrativa que é um reflexo do que ele compreendeu, e não uma impressão. E esse conhecimento ajuda a entender também o que está sendo dito nos documentos – às vezes, estão “em grego” se não são bem interpretados. Quanto mais se lê antes de começar a investigar, mais preciso vai ser o relato e melhor vai ser a apuração. Menos suscetível à manipulação. Então, a informação prévia é fundamental.

Perfil

Rubens Valente Soares, 44 anos, nasceu em Goio-Erê (PR). É formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Começou como repórter em 1989 no Diário da Serra, em Campo Grande (MS). Hoje, atua na sucursal da Folha de S.Paulo em Brasília. Cobriu a CPI dos Correios, em 2005, e diversas operações da Polícia Federal. Recebeu o Prêmio Esso de Reportagem em 2001, duas vezes o Prêmio de Excelência Jornalística da Sociedade Interamericana de Imprensa, em 2012 e 2013, duas vezes o Grande Prêmio Folha de Jornalismo (2001 e 2010) e o prêmio do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, em 2011. Participou do projeto Folha Transparência, que em 2013 ganhou o Prêmio Esso de Contribuição à Imprensa. Recebeu três menções honrosas do Prêmio Latinoamericano de Jornalismo de Investigação do Instituto de Prensa y Sociedad em 2004, 2011 e 2012, e uma menção honrosa do Prêmio Vladimir Herzog. É autor do livro-reportagem Operação Banqueiro (Geração Editorial, 464 páginas, 2013).

 

   

 

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