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COFCO e o papel da agricultura na industrialização

Escrito por Arthur Silva para o site "A Revolução Industrial Brasileira"05 de Out de 2020 às 11:51
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A agricultura pode desempenhar um importante papel no processo de industrialização tanto na geração de excedentes para o investimento na indústria como na demanda de bens de capital para aplicação no campo. A experiência da COFCO na industrialização chinesa nos ajuda a entender os caminhos dessa aliança virtuosa.

A história da COFCO se confunde com a história recente da China. Fundada no mesmo ano em que a revolução é vitoriosa, em 1949, a China Oil and Foodstuffs Corporation é o braço do Estado chinês no planejamento do setor externo da agricultura. Entre 1952 e 1987, foi a única operadora de exportação e importação de commodities agrícolas chinesas.

O então recém estabelecido governo chinês se via premido por dois objetivos contraditórios para sua política agrária. De um lado, deveria assegurar renda suficiente para os camponeses, esteio da estabilidade social e política no país. De outro, a política agrária também deveria garantir alimentos baratos o suficiente para os trabalhadores urbanos e matérias-primas para o processo de industrialização, além de excedentes que pudessem ser investidos no setor manufatureiro em uma economia com escassez de recursos. Ademais, o governo chinês também se orientava por um princípio de autossuficiência agrícola em função da experiência histórica do país asiático.

Em um extenso estudo, Yi Ping Shea narra as diversas adaptações da política agrária ao longo da história recente da China caminhando entre estes dois objetivos. Nos primórdios da industrialização, a “tesoura de preços” facilitava a alocação de recursos em favor da manufatura por meio dos preços contábeis da planificação central. A COFCO desempenhava um papel central por meio da exportação de excedentes nas safras favoráveis e importação de alimentos nas desfavoráveis. Em meados dos anos 1960, foi implementado um sistema híbrido, com uma quota de produção agrícola alocada diretamente pelo planejamento central e a venda em mercados locais, com um bônus de preço sobre o excedente da quota.

A partir dos anos 1980, no processo de reforma da economia chinesa, o pêndulo da questão agrária volta para a preservação da renda do campo. Inicialmente, foi adotada uma política de preços duplos, principalmente para os grãos como o arroz e o trigo, maiores no campo e menores na cidade. No entanto, essa política dependia de grandes subsídios do governo, que acarretava pesados déficits fiscais. Esse sistema foi gradualmente substituído por tarifas protetivas para o campo combinada com subsídios, que continuava a pressionar o orçamento do governo.

Com a assinatura dos protocolos de entrada na OMC no início dos anos 2000, a política agrária chinesa muda substancialmente, abrindo seu mercado de grãos. É neste momento que o papel da COFCO tornou-se ainda mais fundamental. O governo chinês flexibilizou seu princípio de autossuficiência agrícola – embora ainda exista a meta de 95% de produção própria.

Em um estudo de 2011, Ning Li, Li Zhu e Pei Zhu compararam as estratégias comerciais da COFCO com a ADM, importante empresa estadunidense do ramo de “trading” agrícola. Os estudiosos chineses notaram que o maior valor agregado da agricultura não está na produção propriamente dita, mas nos insumos usados na agricultura e na comercialização da sua produção:

 

Por esta razão, os pesquisadores advogaram por uma estratégia de integração vertical na produção, abarcando tanto a distribuição como a produção de insumos.

Com a crescente inserção nos mercados mundiais, a COFCO passa por uma profunda transformação. A estatal chinesa adquire importantes “traders” de commodities agrícolas como a Noble Agri em 2014, pavimentando o caminho para sua penetração em mercados internacionais, inclusive o brasileiro. A COFCO também adquire empresas na outra ponta da cadeia, como a Nidera Seeds, responsável pela produção de sementes, posteriormente realocado para a Syngenta, sob o guarda-chuva de outra estatal, a ChemChina.

No Brasil, a situação é simetricamente oposta. Especificamente sobre a produção da soja, Wesz Jr mostrava em um estudo de 2016 que quatro empresas oriundas da Europa e dos Estados Unidos controlavam 85% das exportações brasileiras deste grão:

Essas quatro empresas são conhecidas coletivamente como “ABCD”, acrônimo derivado de suas iniciais: ADM (EUA), Bunge (Holanda), Cargill (EUA) e Louis Dreyfus (França). No ano de 2014, segundo o estudo de Wesz Jr, as empresas ABCD controlavam mais de 50% da capacidade de processamento de soja não só do Brasil, mas de todo Cone Sul e respondiam por 10% do total de exportações, incluindo as não agrícolas. A questão fica ainda mais chocante quando vemos que o Brasil sozinho responde por 37,8% da soja importada pela China ano de 2018:

 

Em seu artigo, Ning et alli diziam que “os brasileiros plantam a soja, os chineses usam a soja e os americanos decidem o lucro da revenda”. O Brasil se concentra no plantio das commodities agrícolas, atividade com menor valor agregado de toda cadeia. A despeito de alguns avanços, como o anúncio da Embrapa de uma nova variante de trigo adaptado para o cerrado, nosso país tem muito o que avançar na industrialização de insumos para a agricultura. Na revenda, somos dependentes principalmente das empresas ABCD, com uma ainda marginal penetração da própria COFCO no mercado brasileiro.

A COFCO desempenhou no passado uma função essencial na industrialização chinesa, que ainda se mantém. No Brasil, a dependência em relação às empresas ABCD colabora para nosso quadro de desindustrialização. Se aliássemos planejamento ao mercado, as exportações agrícolas brasileiras poderiam ser um vetor para a acumulação industrial, financiando a importação de bens de capital – inclusive da própria China, nossa maior cliente. Em vez disso, os melhores filões dessa cadeia de valor essencial ficaram fora do Brasil.

A agricultura pode ter um importante papel para a reindustrialização do nosso país. Precisamos pensar o Brasil estrategicamente.

REFERÊNCIAS:

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vaivem/2020/09/trigo-pode-ser-a-nova-soja-da-embrapa-e-ja-chama-a-atencao-ate-da-coreia-do-norte.shtml

NING Li; LI Zhu; PEI Zhu. A Comparative Study of COFCO and ADM Based on the Whole Industry Chain Strategy. International Conference on Information Management, Innovation and Industrial Engineering; 2011. Disponível em https://ieeexplore.ieee.org/document/6114709

WESZ JR, Valdemar João. Strategies and hybrid dynamics of soy transnational companies in the Southern Cone. The Journal of Peasant Studies, 43:2, 286-312;2016. Disponível em http://dx.doi.org/10.1080/03066150.2015.1129496

SHEA, Yi Ping. The Political Economy of China’s Grain Policy Reform. Dissertação de doutorado. Universidade de Adelaide, Australia, 2013. Disponível em https://digital.library.adelaide.edu.au/dspace/handle/2440/22016

   

 

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