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Ariano Suassuna: “O homem não nasceu para a morte, nasceu para a vida e a imortalidade”

Escrito por Ceape TCE/RS29 de Jul de 2014 às 15:13
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Ariano Suassuna: “O homem não nasceu para a morte, nasceu para a vida e a imortalidade”. 

Leia a matéria sobre Ariano Suassuna, publicada no jornal Hora do Povo de 29/7/2014

 Ele tinha convicção de que, apesar de todas as vicissitudes, o ser humano sempre triunfaria

Ariano Suassuna, falecido na quarta-feira, recebe de todo o país as homenagens a que um homem e um escritor de raro talento e bravura tanto merece. Tinha 87 anos – e durante os últimos 60 anos foi um dos pontos luminosos da cultura nacional.

Neste sentido, ele foi a negação de todos os contrabandos ideológicos que negam a existência de uma cultura nacional no Brasil. Pode parecer estranho que em homem tão jovial, ressaltemos seu papel de negação de uma negação.

No entanto, o reconhecimento da dominação imperialista no campo cultural – e a luta contra ela – não é pouca coisa na história da nossa literatura e na constituição da nossa cultura.

Abordando algo que se apresentava como "forró", escreveu, em artigo relativamente recente:

"Quando um vocalista de uma banda de música popular, em plena praça pública, de uma grande cidade, com presença de autoridades competentes (e suas respectivas patroas) pergunta se tem ‘rapariga na plateia’, alguma coisa está fora de ordem. Quando canta uma canção (canção?!!!) que tem como tema uma transa de uma moça com dois rapazes (ao mesmo tempo), e o refrão é ‘É vou dá-lhe de cano de ferro/ e toma cano de ferro!’, alguma coisa está muito doente. Sem esquecer que uma juventude cuja cabeça é feita por tal tipo de música é a que vai tomar as rédeas do poder daqui a alguns poucos anos".

Era dotado de uma rara capacidade de síntese:

"Antigamente, para conquistar e subordinar um país, os Estados Unidos mandavam exércitos. Hoje, mandam Michael Jackson e Madonna. É incrível como as pessoas valorizam esses débeis mentais e deixam esquecidos artistas de talento que existem aqui".

Ele tinha a convicção de que, apesar de todas as vicissitudes, o ser humano sempre triunfaria. Resumiu em poucas palavras esse fio que permeia sua obra:

"O homem não nasceu para a morte, nasceu para a vida e para a imortalidade".

Em nenhum momento ele se permitia não ver a realidade, ser infiel à verdade:

"Estendo meu horror ao terrorismo aos atos praticados pelos americanos. O pior terrorismo é o de Estado. As pessoas que derrubaram as torres de Nova York: é um ato reprovável, mas são corajosos. Enfrentaram e morreram. O terrorismo de Estado é ao abrigo de qualquer risco".

Ele não era um homem que transigisse, em qualquer medida, com o lixo cultural:

"Depois que eu vi num hotel em São Paulo um show de rock pela televisão, nunca mais eu critiquei os cantores medíocres brasileiros. Qualquer porcaria como a Banda Calypso ainda é melhor que qualquer banda de rock".

Durante toda a sua vida, ele homenageou seu pai, o ex-governador da Paraíba João Suassuna, opositor de João Pessoa – e, por consequência, de Getúlio Vargas. O assassinato de seu pai, como disse em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, marcou sua vida ("Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo").

Mas isso não lhe fez, em nenhum momento, deixar de ver o papel de Getúlio na História do Brasil. O ressentimento estúpido não era a sua especialidade.

O ESCRITOR

Quando Ariano Suassuna publicou, em 1971, "A Pedra do Reino" (aliás, "Romance d’A PEDRA DO REINO e o Príncipe do sangue do vai-e-volta"), Carlos Drummond de Andrade comentou: "escrever um livro assim deve ser uma graça, mas é preciso merecer a graça da escrita, não é qualquer vida que gera obra desse calibre".

João Cabral, o rigoroso poeta que não desperdiçava palavras, disse o que achava através de um poema em quatro estrofes, compostas cada uma por quatro dísticos – uma obra-prima de simetria - intitulado, precisamente, "A pedra do reino":

Foi bem saber-se que o Sertão/ não só fala a língua do não.// Para o Brasil, ele é o Nordeste/ que, quando cada seca desce,// que quando não chove em seu reino,/ segue o que algum remoto texto:// descer para a beira do mar/ (que não se bebe e pouco dá).

Os escritores que do Brejo,/ ou que da Mata, tem o sestro// de só dar a vê-lo no pouco,/ no quando em que o vê, sertão-osso.// Para o litoral, o esqueleto/ é o ser, o estilo sertanejo,// que pode dar uma estrutura/ao discurso que se discursa.

Tu, que conviveste o Sertão/ quando no sim esquece o não,// e sabes seu viver ambíguo,/ vestido de sola e de mitos,// a quem só o vê retirante,/ vazio do que nele é cante,// nos deste a ver que nele o homem/ não é só o capaz de sede e fome.

Sertanejo, nos explicaste/ como gente à beira do quase,// que habita caatingas sem mel,/ cria os romances de cordel:// o espaço mágico e o feérico,/ sem o imediato e o famélico,// fantástico espaço suassuna,/ que ensina que o deserto funda.

O autor levara 13 anos escrevendo a obra. Mas, o que era ela? Um romance? Não exatamente – pelo menos não um romance ao modo de Balzac. Talvez Maximiano Campos – o autor de "Sem Lei nem Rei", e, claro, pai do futuro governador Eduardo Campos - tenha chegado próximo de uma definição do livro: "nossa epopeia áspera, sertaneja e mestiça, criada por um escritor nordestino. Uma projeção profética e simbólica do futuro no tempo do agora, a expectativa messiânica da redenção aos pobres".

Mais extraordinário no feito de Ariano é que ele havia escrito um grande livro numa região, o Nordeste, onde as inevitáveis comparações, em todo o país, têm como medida, como em nenhuma outra região do país, uma série – ou uma plêiade - de grandes escritores, desde os mais conhecidos, Graciliano, Jorge Amado e José Lins do Rego, aos menos, como Amando Fontes ("Os Corumbas"), e ainda outros que, nessas horas, são retirados de um injusto esquecimento (um dos exemplos mais proeminentes é o próprio companheiro de juventude de Ariano, Hermilo Borba Filho, autor da tetralogia "Um Cavalheiro da Segunda Decadência").

Além da grandeza literária, não há muitos casos, na literatura brasileira, de um livro com mais de 600 páginas que tornou-se um êxito nas vendas e na crítica. Sobretudo quando o autor permaneceu fiel aos seu próprio critério: "A massificação procura baixar a qualidade artística para a altura do gosto médio. Em arte, o gosto médio é mais prejudicial do que o mau gosto... Nunca vi um gênio com gosto médio".

É verdade que ele também declarou, recentemente: "Sou um escritor de poucos livros e poucos leitores. Vivo extraviado em meu tempo por acreditar em valores que a maioria julga ultrapassados. Entre esses, o amor, a honra e a beleza que ilumina caminhos da retidão, da superioridade moral, da elevação, da delicadeza, e não da vulgaridade dos sentimentos".

Mas o que estava (e está) errado e ultrapassado não era a literatura ou os valores de Ariano.

O AUTO

Tanto assim que ele é autor da peça mais popular do teatro brasileiro até hoje: o "Auto da Compadecida".

Já se escreveu muito sobre as fontes populares – e até eruditas – dessa peça. Aqui, queremos frisar a originalidade que, em nossa opinião, decidiu a sua imortalidade - Deus é negro:

JOÃO GRILO: Porque... não é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado.

BISPO: Cale-se, atrevido.

MANUEL: Cale-se você. Com que autoridade está repreendendo os outros? Você foi um bispo indigno de minha Igreja, mundano, autoritário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exercer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação era ser humilde porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e virtude requer. Que direito tem você de repreender João porque falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em vida e provou sua sinceridade exibindo seu pensamento. Você estava mais espantado do que ele e escondeu essa admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou.

JOÃO GRILO: Muito bem. Falou pouco mas falou bonito. A cor pode não ser das melhores, mas o senhor fala bem que faz gosto.

MANUEL: Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?

A peça, aparecida em 1955, foi escrita ao mesmo tempo que João Cabral do Mello Neto escrevia "Morte e Vida Severina".

Ariano, desde a juventude ligado ao teatro – fundou, com Hermilo Borba Filho, o Teatro do Estudante de Pernambuco, na década de 40 do século passado, e, em 1959, o Teatro Popular do Nordeste – além do "Auto da Compadecida" é autor de outras das mais populares peças da literatura brasileira, inclusive "O Santo e a Porca", "A Pena e a Lei" e "Farsa da Boa Preguiça".

   

 

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