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A Constituição e os cortes no orçamento

A democracia é indiferente ao aumento da desigualdade?

Escrito por Artigo de Daniel Capecchi Nunes para o JOTA14 de Ago de 2018 às 13:04
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Fonte: Pixabay.
 
 

No dia 01 de agosto de 2018, o Presidente da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior) remeteu um ofício para o Ministro da Educação alertando sobre os riscos que os cortes no orçamento representariam para as atividades da instituição. De acordo com o ofício, tais cortes teriam por consequência a suspensão do pagamento de quase 200 mil bosas. A redução no orçamento da instituição estaria relacionada tanto com a crise fiscal vivida pelo Brasil quanto com a aprovação da EC no 95, que estabeleceu o teto dos gastos públicos.

O cenário dramático apresentado pelo Presidente da CAPES não é uma peculiaridade da área, mas uma realidade de diversas instituições e programas sociais, revelando uma crise entranhada no projeto de inclusão representado pela Constituição de 1988. De acordo com o Tribunal de Contas da União, se as regras permanecerem como estão, em 2023 teremos a total paralisia da máquina estatal, o que terá efeitos diretos em diversas atividades do Poder Público, tais como a fiscalização de rodovias ou o pagamento de programas sociais, como o bolsa família. Em um contexto de desigualdade severa entre os cidadãos, como é o brasileiro, o Estado se encolhe e reduz seus campos de atuação. Como consequência, a inércia produzirá mais desigualdade e agravará dramas seculares que assolam nossa sociedade.

Diante dessa crise, uma pergunta se torna inevitável: a democracia constitucional é compatível com qualquer política econômica? Em outras palavras, trata-se de questionar se seria possível manter as condições democráticas de existência política em um cenário de agravamento das desigualdades sociais e da redução do papel do Estado na tentativa de contê-las.

Historicamente, o constitucionalismo moderno representou a ruptura de um modelo de organização estatal fundado nos direitos e na representação de classes sociais distintas para uma organização fundada na universalidade. A partir de daquele ponto, não haveria mais distinção entre uma aristocracia e o povo, mas todos seriam igualmente cidadãos. Se nas suas origens, esse ideal de universalidade dos direitos era compatível com a total desigualdade econômica, em seu desenvolvimento, percebeu-se que a democracia dependia de esteios materiais francamente relacionados com a construção de uma igualdade substancial entre os indivíduos. Ao menos, esse foi o caminho que parte das democracias maduras tomou na segunda metade do século passado.

De certa maneira, a sorte de um regime democrático tinha relação com a manutenção de condições mínimas de vida, que não seriam compatíveis com a desigualdade total entre os sujeitos. A desigualdade econômica total entre as pessoas teria o condão de esgarçar o tecido social de tal forma que as condições de uma existência democrática se desconstituiriam com a manutenção das desigualdades entre os diferentes grupos sociais. A ideia de um regime representativo, sem distinções de classe social, dependeria em algum grau da igualdade econômica entre as pessoas.

Nos últimos anos, a desigualdade tem crescido brutalmente, estando associada a uma mudança brusca na concepção do papel do Estado, que vai perdendo todas as condições de reduzi-la. Paralelamente, em um mesmo ritmo progressivo, as aspirações autoritárias e antidemocráticas têm ganhado força e ideias, antes consideradas completamente anacrônicas, assumem inusitados níveis de plausibilidade.

Certamente, os dois fenômenos poderiam ser considerados alheios um ao outro. No entanto, é difícil não associar os estudos que afirmam que 40% dos americanos perderam a fé na democracia com os que demonstram que os 1% mais ricos do mesmo país possuem 20% da riqueza nacional e os 50% mais pobres, 12,5%. O crescimento das desigualdades e a precarização das condições de trabalho representam a extinção da classe média, cuja existência e expansão foram, até agora, essenciais para a manutenção de uma sociabilidade democrática.

Devemos nos questionar: uma pessoa que vê suas condições de trabalho, sua segurança alimentar e sua moradia se deteriorarem terá condições de participar como um igual no processo democrático? Intuitivamente, parece que não. Ao contrário, a desigualdade produzida nas democracias contemporâneas parece ferir de morte a fé nos processos eleitorais e tornar possível a aposta em pesadelos ditatoriais.

Apesar de ser uma ideia que se espalhou pelos quatro cantos do mundo, a democracia não flutua no ar. Sua existência é encarnada pelas práticas sociais e pelas relações reais entre os cidadãos, o que, necessariamente, envolve uma dimensão econômica. Em uma circunstância de inicial de enorme desigualdade, como a brasileira, a aposta na redução do papel do Estado no ataque às desigualdades, pode representar o sepultamento das incipientes condições de florescimento de instituições e de uma sociedade civil que se democratizava.

Em suma, é preciso constatar que a democracia constitucional não é indiferente aos diversos projetos econômicos existentes no mercado de ideias. Mais do que isso, talvez sua existência não seja compatível com aqueles projetos abertamente excludentes. Desigualdade e democracia podem assumir e, frequentemente, assumem ares antagônicos. Pensar a constituição e o constitucionalismo exige tomar isso como um ponto de partida.

   

 

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