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Precisamos debater os custos e riscos do regime jurídico do Banco Central

Escrito por Élida Graziane Pinto* para o site Conjur22 de Abr de 2019 às 13:56
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Procuradora Élida alerta para os custos e riscos do regime jurídico do Banco Central.
 
 

Em meio ao ruído causado pela decretação1 de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro, o Planalto noticiou, no dia 19, um rol de “15 propostas prioritárias para a economia do Brasil”2 como contraponto ao abandono da sua, até então, prioridade temática da reforma da Previdência.

Politicamente, a segurança pública assumiu a centralidade da agenda governamental e isso fez com que a revisão pretendida para os regimes geral e próprio de previdência dos servidores públicos fosse — em tese — substituída por uma rota “alternativa” de ajuste fiscal.

As medidas recentemente anunciadas pelo governo federal em seu “Plano B”3 econômico são, em sua maioria, projetos que já se encontravam em tramitação no Congresso, alguns dos quais há mais de duas décadas. Integram a aludida “pauta prioritária” temas como (1) simplificação tributária: reforma do PIS/Cofins; (2) autonomia do Banco Central; (3) revisão do marco legal de licitações e contratos; (4) nova lei de finanças públicas; (5) regulamentação do teto remuneratório no serviço público; (6) desestatização da Eletrobras; (7) “reforço” do regime jurídico das agências reguladoras; (8) depósitos voluntários de instituições financeiras no Banco Central; (9) redução da desoneração da folha; (10) programa de recuperação e melhoria empresarial das estatais; (11) cadastro positivo para fins de concessão de crédito; (12) duplicata eletrônica; (13) distrato em aquisições de bens imóveis; (14) atualização da Lei Geral de Telecomunicações; e (15) extinção do Fundo Soberano.

O elenco de conteúdos acima nos dá a dimensão da falseada ousadia no anúncio de tal “pauta prioritária”. Isso porque a expectativa de sua aprovação — neste ano de eleições nacionais e estaduais — é semelhante à capacidade de resolução da crise de segurança pública (que, por sinal, não é só carioca) por meio de uma tópica e salvacionista intervenção federal. Ora, para problemas antigos e complexos, se as soluções fossem fáceis ou rápidas, elas já teriam sido aviadas.

Assim como a insegurança pública4 no país ultrapassa as fronteiras do Rio de Janeiro, o caos nas contas públicas brasileiras não está adstrito às despesas primárias como a Emenda 95/2016 pretendeu fazer crer. Mas, a despeito disso, as medidas contidas no aludido “Plano B” visam majoritária e exatamente dar continuidade à estratégia linear de redução do tamanho do Estado (que inspira o teto fiscal). É preciso retomar a consciência da complexidade do problema para que seja possível formular diagnósticos mais críveis e, portanto, mais suscetíveis de equacionamento intertemporalmente estável e constitucionalmente adequado.

Ocupamo-nos, nesta coluna, de pensar sobre as propostas que impactam o regime jurídico do Banco Central, o qual, muito embora seja opaco e quase solenemente ignorado pela sociedade, determina o modus operandi do núcleo da agenda econômica do nosso país.

A repercussão fiscal das políticas monetária, cambial e creditícia é algo que não pode ser subestimado para o avanço da dívida pública federal nos últimos 15 anos, até porque, por exemplo, o custo de gerenciamento das reservas cambiais e das operações compromissadas ultrapassa a casa de 15% do PIB.

Contra as críticas acerca dos juros básicos comparativamente elevados5 e de outras distorções na gestão da política cambial (manejo perenizado de swaps e estoque desarrazoado de reservas) e da política monetária (operações compromissadas), o governo federal e os economistas “ortodoxos” — usualmente e de forma quase uníssona — reclamam necessidade de discricionariedade quase absoluta (o que é uma contradição em seus próprios termos) para a autoridade monetária e atribuem exclusiva responsabilidade pela expansão da dívida pública à política fiscal.

É inegável a necessidade de reequilíbrio nas contas públicas, mas não se pode entrincheirar apenas nas despesas primárias a raiz do mal-estar acerca da expansão acelerada da dívida pública. Segundo José Roberto Afonso, o Brasil precisa balizar — de forma integrada — as interfaces entre as políticas fiscal, creditícia, monetária e cambial. Tal horizonte ampliado se justificaria na medida em que o famoso tripé econômico6, que sustentara a origem do Plano Real, teria se tornado, desde a crise de 2008, um “quatrilho” 7 mal gerido e fora de controle:

“Não há como avaliar plenamente a evolução da dívida pública federal porque, na prática, ela nunca foi submetida aos limites e regras estabelecidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal e, até mesmo, há muitas disposições da Constituição Federal, que regula, dentre outras, as relações entre banco central e tesouro (títulos em mercado), a limitação das dívidas federal, consolidada (Senado) e mobiliária (lei), e a regra de ouro (operações de crédito não podem superar despesas de capital).

Dívida pública federal é melhor termômetro das relações cada vez mais intrincadas e complexas entre instrumentos de política econômica — fiscal, monetária, cambial, e, depois da crise global, creditícia. Desde a formulação da política até o seu controle pelo TCU, é premente uma visão estratégica e abrangente das diferentes faces desse relacionamento e em busca de harmonização das políticas”.

Interessante notar que críticas contundentes ao conservadorismo pressuposto na atuação do Banco Central brasileiro têm vindo até de quem participou da concepção do Plano Real, como André Lara Resende8. Ele nos alerta para o risco de os juros altos agravarem o desequilíbrio fiscal, sem terem — de fato — capacidade de reduzir a inflação, dada a sinalização que oferecem para o mercado no longo prazo:

“O financiamento monetário — através da expansão de reservas remuneradas no banco central — não é inflacionário. Logo, maior necessidade de financiamento público não exige necessariamente juro alto. O único modelo analítico compatível com a evidência empírica do QE [Quantitative Easing] leva à conclusão de que o juro nominal alto sinaliza uma inflação alta, pauta assim as expectativas e mantém a inflação alta. Ou seja, o juro alto, não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo mantém a inflação alta”.

Não obstante tais críticas, vivemos tempos em que cumprir os ditames constitucionais para a fixação de limites para a dívida pública federal9 e exigir mensuração de riscos fiscais para os resultados operacionais do Banco Central10, na forma da Lei de Responsabilidade Fiscal, são propostas solenemente ignoradas até mesmo pelos órgãos de controle da integridade do ordenamento pátrio e da conformidade do ciclo orçamentário da União.

Eis o contexto de relativa interdição do debate sobre o regime jurídico do Banco Central, em que sobrassaem do “Plano B” econômico apresentado pelo Planalto as propostas que visam dispor sobre sua autonomia (Projeto de Lei Complementar 200/1989) e a autorização para que ele acolha depósitos à vista ou a prazo a serem feitos “voluntariamente” pelas instituições financeiras (Projeto de Lei 9.248/2017).

Abordaremos, doravante, cada qual desses projetos naquilo que eles trazem de redesenho estrutural na equação entre custos e riscos da atuação do Banco Central para a sociedade e, em especial, para as finanças públicas.

Tecnicamente, a autonomia que se almeja para o Banco Central seria a atribuição de mandatos fixos aos seus diretores e presidente, de modo a equipará-los — direta ou indiretamente — aos dirigentes das agências reguladoras. O estabelecimento de limites à exoneração ad nutum dos cargos comissionados nucleares do Banco Central, em tese, traria maior capacidade operacional para essa autarquia perseguir as metas que lhe orientam a atuação nas políticas monetária, cambial e creditícia.

Mas de qual feixe de influências o corpo diretivo superior do Banco Central pode legitimamente pretender se autonomizar, ainda que parcialmente? A autonomia que se põe em debate é juridicamente possível, mas também implica equidistância em relação aos interesses dos agentes do mercado financeiro e cambial, que deveriam se submeter ao poder de polícia do BC (tal como dispõe, por exemplo, a Lei 13.506/2017).

Interessante, a esse respeito, recuperar no Projeto de Lei Complementar 200/1989 as balizas claras de nomeação (inclusive provimento limitado), dedicação exclusiva e quarentena prévia e posterior (de modo a se mitigar o risco de conflito de interesses) para o exercício dos cargos de diretor e presidente do Banco Central, como as que se seguem:

Art. 3º A escolha do Presidente deverá recair, preferencialmente, sobre servidor integrante do quadro permanente da entidade. Os demais cargos de diretoria são privativos dos servidores da autarquia.

Art. 4º É vedada a designação de pessoa que, nos últimos quatro anos, tenha exercido atividade, com ou sem vínculo empregatício, ou de qualquer forma colaborado com a gestão ou administração de empresa integrante do sistema financeiro privado ou que opere nos ramos de previdência ou seguro, bem assim suas coligações controladas.

Parágrafo único. A vedação prevista no caput é extensiva aos que, no mesmo período, tenham sido proprietários, sócios, acionistas ou controladores a qualquer título das empresas mencionadas.

[...]

Art. 6º A investidura nas funções de diretoria ou presidência do Banco Central do Brasil será precedida de compromisso de dedicação exclusiva em tempo integral, vedado o exercício de qualquer outro cargo, emprego ou atividade, pública ou privada, bem como o titularidade de ações, cotas, debêntures, partes beneficiárias ou qualquer outro título representativo de capital ou interesse em empresa privada.

[...]

Art. 8º Por um período de dois anos a exoneração do cargo de diretor ou presidente, é o ex-titular impedido de exercer qualquer atividade profissional, com ou sem vínculo empregatício, para empresa privada, nacional ou estrangeira, integrante do sistema financeiro ou que opere nos ramos de seguro ou previdência, suas controladas e coligadas, bem assim naquelas sujeitas ao controle, fiscalização ou supervisão do Banco Central do Brasil.

Parágrafo único. A vedação prevista no caput deste artigo, estende-se à aquisição de ações, cotas, debêntures, partes beneficiárias ou qualquer outro título representativo de capital ou interesse nas empresas mencionadas.

Não é possível defender autonomia do Banco Central seletivamente e apenas em relação aos influxos democráticos do governante de ocasião11. Como os próprios dispositivos acima apontam, é imperativo que sejam debatidas as fronteiras seguras de provimento limitado à carreira, dedicação exclusiva e quarentena prévia de quatro anos e posterior de dois anos para se evitar conflito de interesses e o severo risco de captura dos seus diretores e presidente pelo mercado que tal agência deve regular.

Uma eventual previsão legal de mandatos fixos para a diretoria e a presidência do Banco Central deve vir acompanhada das maiores transparência e impessoalidade possíveis em relação aos ocupantes de tais cargos comissionados, bem como em relação à prestação de contas dos seus atos praticados no exercício de tão sensível função pública.

É nessa perspectiva de acompanhamento sistêmico que o debate acerca do outro projeto de lei relativo ao regime jurídico do Banco Central, o PL 9.248/2017, revela-se ainda criticamente carente de maior clareza e reflexão.

O que se pretende, com tal projeto, é transformar o estoque volumoso de operações compromissadas, hoje na casa de R$ 1,1 trilhão, em depósitos voluntários das sobras de caixa das instituições financeiras no Banco Central. O problema é que tal mudança se consumaria mediante critérios de “remuneração, condições, prazos e formas de negociação” a serem fixados posteriormente em regulamento do próprio BCB, conforme prevê o parágrafo único do artigo 1º do PL 9.248/2017.

Ora, é francamente inconstitucional e desarrazoado remeter decisões alocativas sobre algo como R$ 1,1 trilhão de operações compromissadas ao temerário campo da discricionária e altamente vaga regulamentação infralegal posterior. Com tal estratégia, seria majorada a opacidade dos gastos envolvidos com a remuneração desses depósitos, já que as operações compromissadas tornadas “depósitos voluntários” deixariam de constar do radar de acompanhamento da dívida bruta do governo geral.

Como bem determina o artigo 14 do Decreto-Lei 200/1967, a simplificação de processos e a supressão de controles — inclusive no campo da estrita legalidade — só são cabíveis se os custos envolvidos na fiscalização forem evidentemente superiores aos riscos envolvidos em tal flexibilização. Aqui — na seara trilhionária das políticas cambial e monetária –—não se pode impunemente abrir mão da expressa previsão legal e do controle mediante balizas máximas de endividamento da União e também mediante o levantamento anual dos riscos fiscais envolvidos nas operações do Banco Central.

Ao nosso sentir, não são suficientes para assegurar o controle abrangente e tempestivo dos custos e riscos envolvidos na gestão das políticas monetária, creditícia e cambial pelo Banco Central as previsões do artigo 7º, parágrafo 3º e do artigo 9º, parágrafo 5º da LRF. Ora, ao lidar — direta ou indiretamente — com a gestão de cerca de 25% do PIB, a autoridade monetária não pode ser chamada a prestar contas apenas por meio da mera apresentação a posteriori de balanços trimestrais e de avaliação semestral do cumprimento dos seus objetivos e metas perante o Congresso.

Debater autonomia do Banco Central, sem regular os severos riscos de conflito de interesse que o expõem a uma forte tendência de captura pelo mercado financeiro, e adicionalmente dar-lhe permissivo para regular por ato infralegal operações compromissadas, a serem transformadas em depósitos voluntários que ultrapassam o montante de R$ 1 trilhão, é literalmente perder de vista o aprendizado histórico acerca da imprescindibilidade de freios e contrapesos para assegurar o exercício legítimo do poder em quaisquer democracias constitucionais. Eis nosso temor quanto aos moldes jurídicos do aventado “Plano B” econômico.

No Brasil, onde ainda não há limites para a dívida pública federal, tampouco é feito o levantamento sistemático dos riscos fiscais e onde a opacidade dos custos decorre da absorção irrestrita dos resultados numa relação incestuosa entre Tesouro e Banco Central (artigo 7º, parágrafo 1º da LRF), a tendência é de uma autonomia alheia aos ditames constitucionais.

O nome da liberdade decisória que ultrapassa as fronteiras do permissivo jurídico que lhe autorizou a existência não é discricionariedade, tampouco “autonomia”. A bem da verdade, os riscos e os custos implicados pelas escolhas das políticas monetária, creditícia e cambial só podem ser legítimos se adstritos ao ordenamento vigente, sob pena de arbitrariedade.

Do outro lado dessa equação sobre a prioridade das escolhas orçamentárias, a sociedade vê a estagnação das metas do Plano Nacional de Educação, o caos prisional, a elevação do número de mortes violentas que nos põem em um verdadeiro contexto de guerra12 não declarada (como no Rio de Janeiro) e o já em curso quadro de colapso do SUS. Tal angústia está contida no debate sobre a incidência do teto fiscal da EC 95/2016, com a queda verificada, por exemplo, de 3,1% dos gastos federais em saúde e educação em 201713.

Ninguém duvida da imperativa necessidade de ajuste fiscal e de fazer/explicitar trade-offs, mas a divergência é sobre a ordem de prioridade das despesas (incluídas aqui as despesas financeiras e os gastos tributários). Divergimos sobre o modo... O fato de haver mais de R$ 1 trilhão em operações compromissadas sendo remuneradas, no mínimo, pela Selic com liquidez quase diária, como na época do overnight, é indício de que estamos mirando em coisas muito cosméticas, sem irmos à raiz do problema.

Ao deixarmos o debate sobre o regime jurídico do Banco Central ainda opaco ou alheio à EC 95, a pretexto de conter despesas financeiras como algo decorrente da contenção das despesas primárias, esquecemo-nos de que o tempo da execução orçamentária também é critério de indicação da prioridade estatal.

Aceitar sacrifícios nas políticas públicas asseguradoras de direitos fundamentais para só depois e talvez enfrentar os severos impasses das despesas financeiras é realmente pôr em risco o legado civilizatório da nossa Constituição.

Criticamente a expectativa que há de nos restar é a de que esse teto da EC 95 torne tão insuportável a vida dos cidadãos, pela asfixia financeira dos seus direitos fundamentais, que coloque — de algum modo — o guizo do impasse fiscal no pescoço do Banco Central, antes que lhe aprovem sua "independência" da nossa república e da nossa Constituição.

1 Trata-se do Decreto 9.288, de 16 de fevereiro de 2018.

2 Como noticiado em no site do planalto. (link removido)

3 Como o mercado financeiro designou tal coletânea de propostas, como se lê nesta matéria e nesta outra

4 O registro de mais de 61 mil homicídios em 2016 no território brasileiro é apenas um dos indícios que a comprovam, como se lê neste link e neste outro.

5 A esse respeito, paradigmática é a controvérsia instaurada por André Lara Resende no seu artigo publicado pelo Valor denominado: “Juros e conservadorismo intelectual”, disponível em aqui.

6 Câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação.

7 Trecho extraído da apresentação publicada neste link. (link removido)

8 Inteiro teor do artigo disponível neste site

9 Como suscitamos José Roberto Afonso, Lais Khaled Porto e eu, confira aqui.

10 Tal como propusemos aqui, em coautoria com Victor Carvalho Pinto e Leandro Maciel do Nascimento.

11 Como, por exemplo, reclamado no recente editorial do Estadão.

12 Esse é o sentimento da população carioca, como se vê neste link .

13 Como noticiado nesta matéria.

 

*Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

   

 

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