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MP investiga suspeitas em contrato de R$ 1 bilhão para gestão da saúde de Canoas

Operação cumpre mandados de prisão de envolvidos em supostos gastos irregulares realizados pelo Gamp, terceirizado da prefeitura

Escrito por José Luís Costa - jornal Zero Hora06 de Dez de 2018 às 15:11
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Cássio Souto Santos foi preso em um hotel na zona norte da Capital. (Foto: MP RS / Divulgação).
 
 

O colapso na saúde de Canoas virou caso de polícia. Em meio a uma greve de profissionais de enfermagem, técnicos, farmacêuticos e radiologistas por causa de atraso nos salários pagos pelo Grupo de Apoio à Medicina Preventiva e à Saúde Pública (Gamp), o Ministério Público Estadual (MP) deflagrou operação na manhã desta quinta-feira (6), na qual solicitou mandados de prisão contra quatro pessoas ligadas à entidade.

Até as 9h30min, três pessoas foram presas: Michele Aparecida da Câmara Rosin, atual presidente do Gamp, e Cássio Souto Santos, médico que participou da fundação do grupo e é considerado o principal nome da entidade, que foram detidos em um hotel na zona norte de Porto Alegre; e Marcelo Bósio, ex-secretário da Saúde de Canoas e que participou do processo de contratação do Gamp.

O grupo administra os hospitais Universitário (HU), de Pronto Socorro de Canoas (HPSC), duas unidades de pronto atendimento e quatro de atendimento psicossocial. A terceirização da saúde em Canoas envolve um contrato de R$ 1 bilhão por cinco anos, um dos mais vultosos valores para essa área no país.

Conforme o promotor João Beltrame, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco-Saúde), do MP, os envolvidos são suspeitos de crimes relacionados a gestão de recursos do contrato com o município.

Além dos mandados de prisão, também estão sendo cumpridos 70 mandados de busca e apreensão no Rio Grande do Sul e em mais quatro Estados. O Gamp e outras 15 empresas ainda tiveram decretada a suspensão de contratação com o poder público.

Conforme o MP, foram detectados, entre as irregularidades, superfaturamento de medicamentos em até 17.000%, utilização de laranjas e testas de ferro do chefe do esquema na direção do Gamp, além do pagamento de viagens de férias pagas com dinheiro público da saúde de Canoas.

A investigação apontou ainda a ocorrência de desvios de recursos da prefeitura que seriam destinados à saúde pública para contas bancárias de pessoas ligadas ao grupo. Conforme o MP, o Executivo municipal transferiu R$ 426 milhões para o Gamp desde dezembro de 2016. Deste valor, suspeita-se que pelo menos R$ 40 milhões foram desviados para contas pessoais de integrantes do esquema.

Para o Ministério Público, o Gamp, "travestido de entidade assistencial sem fins lucrativos, se trata de uma típica organização criminosa voltada para a prática de inúmeros delitos, em especial peculato e lavagem de dinheiro, entre outras fraudes que esvaziam os cofres públicos".

Mandado sendo cumprido em Canoas. (Foto: Ronaldo Bernardi / Agência RBS)

 

Contrato em Canoas

A terceirização da saúde em Canoas foi assinada no final de 2016 pelo então prefeito Jairo Jorge (PDT) e pelo universitário Brayan Souto Santos – à época, presidente do Gamp, entidade sem fins lucrativos nascida na periferia de São Paulo, em fevereiro 2007, sob comando de um motorista e de uma costureira.

Após o início da execução do contrato, surgiram suspeitas de irregularidades, conforme auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE). Gestor de quase metade do volume de serviços de saúde em Canoas, o Gamp estaria comprando remédios superfaturados e gastando indevidamente verbas públicas com consultorias, aluguéis de escritórios, passagens aéreas, locação de carros, hospedagens e até consumo de bebidas. Enquanto isso, estaria faltando recursos para salários, medicamentos e insumos.

Até fevereiro deste ano, a prefeitura de Canoas identificou R$ 17,6 milhões em despesas indevidas ou não comprovadas pelo grupo. Por causa disso, desde maio de 2017, a prefeitura vem descontando dos repasses à entidade valores que considera gastos inadequados.

Atualmente, o Gamp deveria receber R$ 21,3 milhões mensais, mas ocorrem abatimentos. E isso seria um dos motivos para restrição no acolhimento de pacientes, atraso de salários e escassez de remédios e insumos, agravando a crise que aflige moradores de Canoas e de 156 municípios da região atendidos, sobretudo, no HPSC.

Uma troca de ofícios em 14 de novembro expõe o descompasso. Documento do grupo reclama de atraso em repasses por culpa do governo do Estado, afirmando ter direito a receber R$ 128,2 milhões. Enquanto isso, o texto da Secretaria de Saúde de Canoas assegura que os pagamentos estão devidamente em dia e que a entidade não vem cumprindo o pactuado.

O processo de contratação do Gamp pelo município de Canoas chegou a ser vetado por auditores do TCE. Medida cautelar foi emitida pelo conselheiro Alexandre Postal, que, depois, mudou de entendimento. A entrada da organização no município ocorreu por meio de chamamento público e foi concretizada pelos termos de fomento de número 01  e 02 de 2016. A assinatura ocorreu em 28 de outubro, pouco mais de 30 dias antes de se encerrar o mandato de Jairo Jorge.

Na época, o controle sobre os dois hospitais e os postos de saúde esbarrava em uma questão formal. Outra entidade, a Associação Educacional São Carlos (Aesc) era a prestadora do serviço, com saída marcada para meados de janeiro de 2017. Como prefeitura e Gamp tinham interesse em concretizar a substituição ainda em 2016, foi costurado acordo. A Aesc aceitou se afastar antes da data oficial, desde que o Executivo municipal e a nova prestadora assumissem débitos pendentes com fornecedores. Termo de transição e cooperação foi assinado em 30 de novembro de 2016.

O documento não teria valor legal. Quem representou Canoas no acordo foi Marcelo Bósio, então secretário da Saúde, quando deveria ter sido o próprio prefeito, de acordo com a lei orgânica do município. Outro problema surgiria tempos depois. Os débitos da Aesc não teriam sido quitados pelo Gamp e pela prefeitura, conforme havia sido combinado. Em setembro de 2018, a antiga contratada entrou com ação na 5ª Vara Cível de Canoas, cobrando R$ 50,4 milhões da prefeitura.

O Gamp ganhou a concorrência pela modalidade conhecida como "melhor técnica". Ou seja, o custo ficou em segundo plano. O primordial era prestar o serviço com excelência. A entidade se credenciou apresentando atestados de experiência. Um deles foi assinado em 2015 por Michele Aparecida da Câmara Rosin, à época, secretária da Saúde do município de Amparo (SP) – onde o Gamp já prestou serviços e é alvo de investigação do MP de São Paulo e de apontamentos do TCE paulista. No ano seguinte, Michele seria contratada como prestadora de serviços do Gamp e, mais tarde, se tornaria presidente da entidade.

Outro comprovante de expertise do grupo apresentado em Canoas teve a chancela do coordenador de outra organização, com sede no Jardim Rodolfo Pirani, na periferia da capital paulista. O homem é integrante do Gamp desde a fundação, em 2007, quando foi nomeado segundo secretário. Depois, foi diretor de eventos e, desde fevereiro de 2011, é membro do conselho de administração.

Embora vitorioso na disputa por demonstrar melhor aptidão para o trabalho em Canoas, o Gamp quarteirizou serviços, alegando necessidade de assessoria para a atividades que ele próprio garantiu em contrato estar habilitado a executar. Entre as consultorias, chama atenção a prestada pelo ex-presidente da entidade, o médico Cássio Souto Santos, com salário de R$ 90 mil por mês, cuja contratação processo teve aval do então presidente do Gamp, Brayan Souto Santos, de quem ele é tio.

Contrapontos

O Gamp divulgou nota em que informa "que irá se manifestar formalmente assim que os advogados tiverem acesso a todo o teor da investigação do Ministério Público Estadual". No texto, o grupo afirma que "é vítima de um movimento de perseguição política e de empresas contrariadas com o sistema  e tem o maior interesse em esclarecer os fatos".

Já a prefeitura de Canoas afirma que "considera positiva" a investigação e que "a atual Administração vem denunciando, antes mesmo de assumir o município, a contratação, realizada no final do governo anterior, pelas deficiências na formatação do edital".

"Com relação à fiscalização dos serviços, mensalmente a prefeitura de Canoas tem discordado e bloqueado valores de despesas apresentadas pelo Gamp, onde haja inconsistência. Inclusive a Administração discute um crédito alegado pelo Gamp de mais de R$ 100 milhões, fruto de inúmeras glosas registradas pela fiscalização".

Por fim, o Executivo afirma que "está colaborando com as investigações do Ministério Público e espera que os fatos sejam esclarecidos com a maior brevidade".

A reportagem procurou a defesa de Marcelo Bósio, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.

   

 

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