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Crise econômica e autoritarismo

Leia artigo do ministro Ricardo Lewandowski para Folha de São Paulo

Escrito por Ricardo Lewandowski* para Folha de São Paulo27 de Ago de 2018 às 10:53
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Preconiza-se desidratação ainda maior do Estado.
 
 

O Estado de bem-estar social, concebido no fim da Segunda Guerra Mundial com o propósito de concretizar os postulados humanistas da civilização ocidental, sobretudo os valores da liberdade e igualdade, vem sendo paulatinamente desmantelado. Na verdade, o próprio Estado-nação, consolidado com a Paz de Vestfália de 1648, vê sua soberania erodida dia a dia, particularmente quanto ao poder de decisão em matéria econômica.

Esse desmonte do Estado vestfaliano deve-se primordialmente ao processo de globalização, intensificado em meados do século passado, correspondendo, em sua essência, a uma intensa circulação de bens, serviços, capitais e tecnologias por meio das fronteiras nacionais, tornada possível pelo extraordinário avanço das comunicações e dos transportes.

Um dos grandes problemas desse processo é a livre circulação de capitais especulativos, que não têm nenhum compromisso com os negócios produtivos dos países hospedeiros. São recursos aplicados com fins especulativos em ativos adquiridos a preços vis ou papéis de curtíssimo prazo, vendidos ao menor sinal de instabilidade política ou econômica. Esse trânsito desembaraçado de capitais, denominado por alguns de cassino global, passou a gerar crises financeiras mundiais, que se sucedem em ciclos repetitivos.

Interessantemente, começam a surgir reações a tal modelo. O 'brexit', ou seja, a decisão do Reino Unido de se retirar da União Europeia, aliada à retórica isolacionista do atual presidente dos Estados Unidos, bem como a volta da xenofobia e do populismo no Velho Mundo —somadas ainda ao reaparecimento de um nacionalismo retrógrado e excludente adotado por alguns governantes—, parecem sugerir que se está diante de uma espécie de desglobalização, cujos efeitos são tão deletérios quanto aqueles causados pelo fenômeno reverso.

Cada vez mais distintas nações passam a defender seus produtos erigindo barreiras tarifárias e não tarifárias a bens importados, além de colocar obstáculos ao crescente fluxo de estrangeiros e migrantes —tangidos de seus lares por dificuldades econômicas, catástrofes ambientais e guerras regionais—, buscando proteger o emprego dos trabalhadores locais. Com a queda dos investimentos e do consumo, aprofunda-se a crise, gerando mais desemprego e miséria.

A atual ordem (ou desordem) mundial, longe de configurar uma situação de anomia passageira, aparenta corresponder ao modo de funcionamento normal, embora irracional, da economia de nosso tempo.

Constitui terreno fértil para o aparecimento de lideranças autoritárias dos mais variados matizes ideológicos, armadas de uma retórica intolerante e repressora.

Como panaceia contra essa crise generalizada preconizam uma desidratação ainda maior do Estado, exceto no campo da segurança interna, com uma severa redução de benefícios sociais, em especial nas áreas de saúde, educação e previdência, como também uma radical privatização dos serviços públicos, mesmo aqueles considerados essenciais, cujas consequências atingem com cruel intensidade precisamente os mais pobres.

A propósito, em recente entrevista publicada no jornal Ragusa News, Giorgio Agamben ressalta: "'Crise' e 'economia' atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar". E acrescenta: "'Crise' hoje em dia significa simplesmente 'você deve obedecer!'".


*Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

   

 

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